terça-feira, 31 de março de 2009

MEMÓRIAS DE UM SOLDADO SEM MALÍCIAS - (Livro)


É costume das pessoas deixarem algo sobre sua vida, ao sentirem que o fim está próximo. Este não foi o meu caso! Comecei escrevendo minhas memórias ain da cedo. Parece-me que ainda estava com meus 28 ou 29 anos. Tudo estava em rescunhos. Um dia reswolvi juntar os papéis com fatos que achava interessante e foi aí que surgiu a idéia de escrever minhas memórias.

Dizem que somente os grandes vultos da história devem ser lembrados. Mas a grande verdade é que, ao escrever minhas memórias, quis apenas deixar alguma coisa para meus filhos, netos e quem estivesse interessado. E qual seria o título? Aí estava um grande dilema. Um dia resolvi dedicar uns minutos para pensar no caso e surgiu a idéia de MEMÓRIAS DE UM SOLDADO SEM MALÍCIAS.

Vou aproveitar este espaço e mostrar parte do meu trabalho. Se é que podemos chamar esta coletânea de besteira de trabalho. Aliás, eu não o fiz para ser julgado, mas para ser registrado. Aqui, as fotos foram excluídas. Elas aparecem somente no original, que eu tive as coragem de chamar de LIVRO.

TÍTULO DO LIVRO: MEMÓRIAS DE UM SOLDADO SEM MALÍCIAS
AUTOR: ADALBERTO CLAUDINO PEREIRA
INÍCIO 1968 (coletas de dados)
INÍCIO: 2005 (organização do livro)
ASSUNTO: MEMÓRIAS
TÉRMINO: 2007
PRÓLOGO

Eram exatamente 23 horas e 30 minutos de um Sábado, do dia 22 de novembro de 1941. Dizem que era tempo de guerra. De quem e contra quem, pouco me interessa saber e, muito menos quem saiu vitorioso ou derrotado. Vitoriosos mesmo foram os meus pais, Sr. José Claudino Pereira e D. Eudócia Pessoa Pereira, moradores de uma localidade conhecida, na época, como “Usina Timbó”, em Abreu e Lima, então Distrito de Paulista, no Estado de Pernambuco. Digo vitoriosos pelo filho que nascia naquele momento, uma criança que recebia o nome de Adalberto Claudino Pereira
Abreu e Lima era um lugarzinho pequeno, mas gostoso de se morar. Com quatro anos, eu já era inteligente, embora tímido como a grande maioria das crianças dalí. A “casa do alto” era a nossa residência. Ela ficava num sítio pertencente ao Sr. Alberto Lundgren (não sei se é assim que se escreve), um alemão proprietário das Lojas Paulistas, depois, Casas Pernambucanas.
O sítio era muito grande com fruteiras diversas como: mangueiras, cajueiros, jaqueiras, bananeiras, laranjeiras, sapotiseiros, mamoeiros, coqueiros, tudo em grande quantidade e cuidados muito bem por minha mãe. Alí, criávamos galinhas, patos, perus, guinés, porcos, ovelhas e o cachorro “Fuck”, um animal bastante sabido que, todas as manhãs subia à minha cama para acordar-me e sempre ia nos encontrar quando vínhamos da Igreja à noite. Era um verdadeiro companheiro.
Daquele tempo (1946-49), guardo duas tristes lembranças: a primeira foi a morte do meu amigo José, um garoto que vinha da feira de Paulista, em um ônibus da Viação “Oliveira”, quando, ao tentar atravessar a estrada, por trás do ônibus, foi colhido e esmagado por um caminhão que levava lenhas para a usina. Os pedaços do meu amigo foram colocados numa rede. José era filho do velho “Pai Tá”. Sua irmã, a Dôra, era uma pessoa maravilhosa.
Outro fato que não consigo esquecer foi a morte do meu cachorro, o “ Fuck”. Todos os dias ele ia ao meu quarto, subia na minha cama e me acordava. Era um verdadeiro amigo, com quem eu brincava nas horas de folga, quando eu não estava na escola.
Certo dia, acordei e fiquei esperando que ele fosse até o meu quarto para acordar-me, fato que já se tornara comum. Como ele não apareceu, levantei-me e fui procurá-lo, encontrando-o caído ao lado da nossa casa. Meu pai ficou sabendo que a doença era incurável e mandou sacrificá-lo. Foi um momento triste e inesquecível. Tenho grandes lembranças do “Fuck”
Quando eram comemorados os meus aniversários, as pessoas da Igreja Batista de Abreu e Lima compareciam em massa e a maior atração era o “Fuck”, que levava objetos para entregar às pessoas por nós indicadas. Todos ficavam boquiabertos com a inteligência do cachorro, que recebia o carinho e a atenção dos presentes.
O INÍCIO DE TUDO

Meu nascimento não foi fácil. Contava minha mãe que eu fui “arrancado a ferros”. Na época, morávamos na chamada “Rua Azul”, em Timbó, um bairro de Abreu e Lima. Foi um trabalho e tanto. Talvez um risco para minha mãe.
Meus primeiros passos no mundo do saber foi em casa, com minha mãe que me ensinou as primeiras letras. A minha primeira professora, propriamente dito, foi D. Marocas, lá mesmo, na Vila Timbó. Era uma professora durona que não pensava duas vezes quando queria ou precisava fazer uso da palmatória, principalmente nas sextas-feiras, dias em que eram realizados os terríveis “argumentos”, uma espécie de avaliação da aprendizagem da semana.
Mas o destino não perdoa e, em 1949, com a morte do meu tio Severino, meu pai foi chamado para substituí-lo, na Fundição Vulcano, de propriedade do Sr. Luiz Rodrigues, um comunista assumido. E lá fomos nós morar em Campina Grande, na Paraíba. Era uma cidade grande, com um sistema de vida diferente. O que era gás, em Abreu e Lima, lá era querosene; o que, para nós, era biliro, para eles era friso ou grampo (para usar em cabelos). Foi dureza acostumar com o dialeto da nova cidade.
A primeira rua onde moramos foi a Liberdade, próximo à SANBRA – Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro. De lá, fomos para a rua Arrojado Lisboa, seguindo-se outras localidades: Rua Paraguai (Prata), Avenida Rio Branco, Rua Idelfonso Aires, Rua Ceará e Rua Monte Santo, essas duas últimas próximas ao Cemitério do Carmo.
Na Avenida Rio Branco, onde tinha a famosa Difusora do Severino, eu conheci a minha primeira namorada, a Lurdinha, irmã do meu amigo Iran, filhos de D. Isaura. Minha Segunda namorada foi a Maria do Carmo (Carminha), filha dos nossos vizinhos Sr. Cícero e D. Maria. A Carminha era irmã do Inácio (Pelado), também amigo meu, e residentes na Rua Ceará. As primeiras namoradas ninguém esquece, principalmente quando elas foram nossas vizinhas.
Em Campina Grande, minha primeira escola foi a famosa Escola de D. Adelma. Sua filha, D. Guiomar, foi minha professora. Depois estudei no Colégio Alfredo Dantas e, em seguida, no Colégio Estadual da Prata (O Gigantão). Dos professores, ainda tenho na lembrança D. Terezinha, D. Raimunda, D. Otília, Marly Carvalho e Jacinta (Francês), Sevy Nunes e Pe. Emídio (Latim), Sinval (Matemática), Raimundo Suassuna (História), Leopoldo (Desenho), Paloma (Inglês), Francisco Aldo (Português), Djalma (Trabalhos Manuais) Gadelha (Canto Orfeônico) e D. Vanda (Geografia).
Quem não guarda lembranças dos tempos de escola! Você, com certeza, guarda as suas, não! Pois bem. Quando eu era aluno de D. Marocas, lá pelos idos de 1946-47, aconteceu um fato inesquecível. Era uma Sexta-feira, dia do temido “argumento”. Para quem não sabe, “argumento” era uma espécie de avaliação daquilo que havíamos estudado durante a semana. A professora colocava os alunos em círculo e fazia as perguntas. Se o aluno acertasse, tudo bem, mas, se errasse, a mesma pergunta era feita a outro aluno. Se este acertasse, daria um “bolo” naquele, com a palmatória. Tinha aluno que batia forte. Eu apanhava pouco porque estudava muito.
Bem, vamos ao fato. D. Marocas fez uma pergunta a uma aluna que não acertou. A mesma pergunta foi feita a mim e eu tive que dar um “bolo” na colega. Como eu gostava muito dela (como amiga, é claro!), bati-lhe de leve. Aí, sobrou pra mim. D. Marocas tomou-me a palmatória e, pegando a minha mão disse: “É assim que se faz” e, como castigo, deu-me um “bolo” que me fez chorar em silêncio. Não sei o que mais me doeu, se a dor ou a raiva da professora.
Bem, voltemos à minha primeira namorada. Eu tinha apenas 11 anos quando tive a primeira namorada. O namoro daquela época era totalmente sem malícias. A Lurdinha tinha apenas 10 anos e já era uma linda menina, uma namoradinha ideal para qualquer garoto exigente. Você já apanhou por causa de uma namorada! Eu já. E foi justamente por causa da Lurdinha. Minha mãe nos flagrou em meu quarto. Embora não estivéssemos fazendo nada de anormal, ela não perdoou e foi um “Deus nos acuda”.
Depois da minha separação da Lurdinha, que só aconteceu por motivos de mudança de residência, só vim a encontrá-la 7 anos depois. Mas esta é outra história que só será contada depois. Se a Lurdinha já era linda com 10 anos, pense nela agora com 17 anos.
Alguma vez um amigo seu tomou sua namorada! Se isso aconteceu, como você reagiu! Se não aconteceu, como você reagiria se acontecesse! Bem, comigo aconteceu e não foi nada agradável. Eu namorava a Joana D’Arc, que namorava meu amigo Roberto sem que eu soubesse de nada. Quando descobri virei uma fera. Depois, quando ela engravidou e foi abandonada pelo cara, veio pedir clemência. O que você faria! Aceitaria o seu pedido de clemência e viveria com ela! A decepção foi bem maior que a vontade de perdoá-la.
Não sei com quantos anos você, caro leitor, teve sua primeira experiência sexual; não sei com quem foi, onde foi, ou como foi. A grande verdade é que, se minha mãe fosse viva e lesse este meu livro, certamente cairia de costas ao saber que seu filho, para ela um garoto ingênuo, teve sua primeira experiência sexual aos 16 anos, com uma prostituta, no “El Dorado”, um cabaré de terceira classe, na feira de Campina Grande. Desgosto maior ela teria se soubesse que foi na mesma ocasião que fumei o primeiro cigarro e tomei a primeira dose de cachaça no colo de uma vagabunda.

UMA VIDA SEM MUITA LIBERDADE

Eu sempre fui um bom menino. Criado sob um regime bastante rígido, não podia fazer o que a maioria dos meninos com a minha idade faz. Esse negócio de falar em namorada, de não cumprir as ordens da mamãe, sair com quem quer, ir aonde deseja, nem pensar. Em casa, ajudava minha mãe lavando louças, varrendo a casa, limpando e arrumando os móveis, lavando e passando roupas, etc. Tudo isso, é claro, sem comprometer a minha masculinidade.
Comecei a jogar futebol com 15 anos. Minha mãe sempre bronqueava, mas terminava cedendo. Meu primeiro e único clube foi o Vasco da Gama, do Monte Santo, em Campina Grande. Meu primeiro treinador foi o Sr. Guilherme. O Vasco da Gama tinha homens maravilhosos e de grande respeito: o Sr. Silva (Diretor de Futebol) era um deles. Dos jogadores, lembro o goleiro Juvenal, os laterais Carboreto e Chico; os meio-campistas Raimundinho e Gringo; e os atacantes Antônio Correia, Paulinho, Zezinho e Nivaldo.
Um destaque a parte para as nossas torcidas organizadas que nos acompanhavam sempre que nos deslocávamos de Campina Grande para jogos amistosos em Esperança, contra o América local, e em Sapé, contra o Confiança. Eram momentos de muita emoção para nós quando entrávamos em campo e éramos saudados pelos nossos torcedores.
Minha mãe era muito exigente e se preocupava demais comigo, fazendo de tudo para afastar-me do vício da mentira. Certa vez, ela foi tomar satisfação com minha professora porque esta havia dito, em sala de aula, que os trovões eram fogos de artifícios que os anjos soltavam em dias de festas no céu, e que os relâmpagos eram os “flashes” das máquinas fotográficas. Minha mãe virou uma fera por achar aquilo um absurdo.
Apesar de tímido, eu praticava as minhas. Certa vez, na escola de D. Adelma, meus colegas quebraram um quadro da professora Guiomar e saíram em disparada. Eu, que havia ficado em sala de aula, terminando uma atividade, caí na besteira de juntar os pedaços espalhados pelo chão. A professora entrou naquele instante e, vendo-me acocorado, colocou-me de castigo, mesmo diante das minhas súplicas. Fiquei de joelhos sobre caroços de milho, com uma cadeira na cabeça. Além disso, fui obrigado a encher um caderno inteiro com a expressão: “Fui de castigo porque quebrei o quadro da professora”.
Dias depois, juntei algumas “tachas”, uns preguinhos de cabeça chata, e coloquei algumas delas na cadeira da professora e nas carteiras dos colegas que riram da minha cara quando eu estava de castigo. O resultado foi maravilhoso. A gritaria foi geral, principalmente da professora Guiomar que ficou com a saia pregada no “traseiro”. Minha vingança estava cumprida.

O COMEÇO DE UMA GRANDE JORNADA

Com dezesseis anos, tive o meu primeiro emprego numa banca de revistas, próximo à Prefeitura Municipal de Campina Grande, por trás do antigo Posto de Saúde. Como o proprietário obrigou-me a trabalhar no dia de Finados, saí do emprego. Não resisti quando vi aquela multidão passando em frente à minha casa, em direção ao Cemitério do Carmo. Num dia como aquele, quando eu poderia estar “enchendo os olhos” com tanta beleza feminina, não era justo ficar “preso” a um trabalho, do qual poderia ser dispensado naquele feriado.
Aos dezessete anos, fui trabalhar com o Sr. Geraldo Soares, num escritório de representações. Ali, nós representávamos Tecidos A. Bittencourt; Tecidos Bangu; Tecidos da Lincoln Industrial; Molas Black Steel e Capotas Triunfo. O escritório ficava no Segundo andar do Edifício Ezial, na Praça da Bandeira.
O Sr. Geraldo Soares era daqueles que não tinham muita responsabilidade. Até em casa, a esposa dele fazia de tudo para “tirar-lhe” dinheiro. Ela chegou a pedir-lhe que me mandasse fazer a feira deles e, todos os sábados, lá ia eu à feira. A mulher aumentava os preços das mercadorias para ficar com a diferença. Esse segredo eu guardei comigo até agora.
Eu ia muito bem no meu emprego, mas alguns fatos fizeram com que eu fosse ficando insatisfeito. Um deles foi quando o Sr. Geraldo Soares atacou uma funcionária dentro do escritório. Ele havia contratado uma jovem por nome de Janete e, certa vez, alegando que precisava de um serviço extra, à noite, convocou-nos para executarmos a “tarefa”. Só que nós chegamos e tivemos que esperá-lo um pouco. Ele chegou alcoolizado, trancou a porta do escritório e partiu para o ataque à Janete. O negócio foi tão sério que eu parti em defesa da colega, atirando uma cadeira contra o agressor. A Janete fugiu e nunca mais voltou ao trabalho.
Outra vez, o Sr. Geraldo Soares convocou-me para um trabalho à noite, alegando que tínhamos uns pedidos para atualizar. Cheguei ao escritório às 19:30, conforme havíamos combinado (eu tinha minha própria chave) e, somente às 21:00 ele chegou bêbado e acompanhado por duas prostitutas, dizendo que uma era dele e a outra era minha e que aquela noite seria inesquecível. Eu recusei a proposta, saí do escritório, deixei os três lá dentro e fui para casa revoltado e decidido a não mais retornar ao trabalho.
No dia seguinte, logo após o almoço, ele chegou à minha casa e, dizendo-se arrependido, falou com minha mãe para que ela me convencesse a voltar ao trabalho. Minha mãe deu-lhe uma lição de moral, enquanto ele ouvia cabisbaixo. Depois de dizer-lhe a verdade, ela conversou comigo e eu continuei o meu trabalho. Eu era muito útil, uma vez que o Sr. Geraldo viajava bastante e deixava o escritório sob a minha responsabilidade.
Aos dezessete anos e seis meses, apresentei-me no Exército Brasileiro. Era o maior sonho de minha vida. Cheguei cedinho para a apresentação. Eram muitos jovens, cada um com um sonho para o futuro. A fila era imensa. A expectativa maior ainda. É claro que naquele meio tinha muita gente que fora contra a vontade, apenas para cumprir com a obrigação.
Finalmente, apareceu um oficial, daqueles chatos, cara de bicho do mato. Pensei lá com os meus botões “esse cara deve ser ruim pra burro”. Mas a vontade de tornar-me soldado era tanta que não liguei muito para ele. Com seu jeito arrogante e com toda prepotência, iniciou sua abordagem curta e grossa: “Quer servir ao Exército! Não! Então sai da fila e vai lá para o outro lado. Não quero ninguém aqui com má vontade”. Ele fez esta pergunta a vários jovens, até que mudou de tática porque muitos estavam respondendo “Não”.
Ao chegar perto de mim, olhou-me de cima a baixo e perguntou se eu era o cara que jogava no Vasco da Gama. Ele já havia recebido informações ao meu respeito. Talvez de alguém que me vira jogar no Estádio Presidente Vargas (do Treze Futebol Clube), e falara ao major Marcelo que era apaixonado por futebol e dirigia o time do BsvE, um dos melhores times amadores de Campina Grande e que só não disputava o campeonato por ser um time de militares.
Depois da seleção, fomos conduzidos à uma sala para sermos medidos e pesados. Era o início de uma bateria de exames. Ali, ficamos completamente despidos, em fila indiana. Outro oficial, portando um tipo de bengala fina, mais parecido com um cipó,, batia com ele em uma das pernas e gritava: “Cuidado com a bichinha, se ela levantar eu baixo com uma bengalada”.
Tinha um gordinho que passou o tempo todo meio encolhido, com as mãos juntas guardando os “documentos”. O oficial chegou perto dele e gritou: “O que você tem guardado aí, rapaz! Tira essa mão e mostra esses negócios pros outros!”. Quando o rapazinho tirou as mãos, descobrimos o porquê de tanto cuidado: era que a “piroca” dele era tão pequena que mais parecia um parafusinho de meia polegada. Todos riram. Eu, como um soldado sem malícia, fiquei na minha.
Meus primeiros dias, como soldado, foram duros e cheios de atividades pesadas. Durante alguns meses varrí os pátios do quartel, carreguei lixos em carrinhos de mãos, puxei folhas com “ciscador”, apanhei lixos com pás, limpei banheiros, ajudei no rancho, tirei guardas nos piores lugares e fiquei de plantão em alojamentos por diversas vezes. Por Ter sido muito bom nos exercícios de tiros ao alvo e lançamento de granadas, fiquei num pelotão especial.
Houve uma seleção para serviços burocráticos, da qual deveria, participar quem tivesse curso de datilografia. Entre mais de oitenta concorrentes, eu fiquei em segundo lugar, o que me reservou o direito de ficar na Fiscalização Administrativa (F.A.), na função de Burocrata (QMG 77) Contador (QMP 100), sob o comando do Tenente Negri, um descendente de italianos, subordinado ao major Marcelo, sub-comandante do Batalhão.
Quando estudante do Colégio Estadual da Prata fiz parte da Banda Marcial, onde tocava “caixa”, meu instrumento oficial, apesar de ser bom em “tarol” e “surdo”. Este fato chegou ao conhecimento do Sargento 62 (meia dois), que comandava a Banda Marcial do Batalhão de Serviços de Engenharia. Este me convocou e passei a integrar aquela grupo. Foi muito bom para mim porque serviu de motivo para que eu fosse afastado do quadro de guardas, ficando apenas com os plantões, que era um serviço mais “elegante”, na expressão da palavra.
Na ordem unida, saí-me muito bem. É que, antes de ir para o Exército, meu pai ensinou-me todos os movimentos com as armas: apresentar e descansar armas; cruzar armas; ombro armas; e ensarilhar armas. Tudo isso usando uma vassoura, e em casa. No quartel, foi fácil para mim e, desta forma, muitas vezes fui escolhido como “guia” nos exercícios e cheguei até a dar “voz de comando”, por determinação dos meus instrutores.
Na Fiscalização Administrativa, fui bastante querido pelo major Marcelo e pelo tenente Negri. Minha função específica era protocolar os rádios recebidos e expedidos (naquele tempo era na base do telégrafo), os ofícios recebidos e expedidos, os telegramas recebidos e expedidos, bem como as partes (documentos internos). Era uma grande responsabilidade, pois eu era a Segunda pessoa a saber dos fatos internos e externos que envolviam a vida do BsvE, até os mais sigilosos. Era uma função de extrema confiança e eu fiz tudo para merecê-la.
Naquela época, o Exército era bastante exigente e o soldado, principalmente o “recruta”, não podia andar à paisana, ou seja, sem o uniforme. Certa vez, eu havia marcado um encontro com a minha namorada. Nós nos encontraríamos na Praça de Bandeira, em frente aos Correios e Telégrafos. Como o meu uniforme de passeio não estava pronto, resolvi arriscar e fui à paisana. Que vergonha! Estava com a garota, quando a patrulha chegou e, sem dar a mínima para os meus sentimentos, levou-me em “cana”. Por sorte, o sargento era meu amigo e deixou-me em casa.
Em outra ocasião, eu estava com dois amigos, Nivaldo e Zé Costa, em uma das ruas de Campina Grande, em busca de aventuras, quando, inesperadamente, apareceu a viatura da Patrulha do Exército (P.E.). Naquele momento, não pensei duas vezes e saí em disparada. Como os soldados corriam bastante, resolvi correr até o cemitério, onde pulei o muro, atravessei o “campo santo” até o portão de entrada e cheguei em casa ofegante (eu morava próximo ao cemitério). Os soldados da patrulha voltaram, pois não tiveram coragem de enfrentar os túmulos.
Naquela ocasião, o sargento era muito chato e prometeu entregar-me ao Comando (eu fora reconhecido por um dos soldados que me perseguiram). Um soldado amigo meu contou-me tudo. Na Segunda feira, já que o fato acontecera no Sábado à noite, o sargento cumpriu o prometido. Mas, ao chegar ao quartel, comuniquei o fato imediatamente ao tenente Negri que, ao receber o sargento, mandou que ele me deixasse em paz e que fosse cuidar dos seus afazeres. O sargento ficou uma fera e, ao passar por mim, disse: “Muito bem, garoto, desta vez você ganhou, mas cuidado que você tá na minha mira!” Como eu não tinha qualquer malícia, apenas ri e saí de mansinho.
Para livrar-me dos serviços de guarda, o major Marcelo colocou-me na Patrulha. Era um serviço mais cômodo por não ter que passar a noite acordado. No entanto, há momentos em que a P.E. enfrenta grandes perigos. Nós tínhamos um colega, soldado Oliveira, um tratorista nota 10, que era uma verdadeira fera. Uma certa noite, a patrulha foi convocada para “acalmar” os ânimos de um soldado que estava quebrando tudo numa Boate. Infelizmente o soldado era o Oliveira e o sargento teve que pedir reforço. Eu estava lá e vi como foi difícil segurar o homem.
No quartel, Oliveira, depois de muito trabalho, foi enrolado em uma lona, amarrado com cordas e colocado no xadrez disciplinar. O tenente Marques, a quem nós chamávamos de “Rock Lane”, por usar as armas bem abaixo das coxas, como o artista do faroeste americano, era um exímio lutador e pediu que abríssemos o xadrez. O oficial entrou, desamarrou o Oliveira que investiu contra ele. O soldado recebeu tantas “porradas” que acabou se acalmando. O tenente Marques era acostumado a amansar cabras valentes.

ENFRENTANDO OS PRECONCEITOS

Para um soldado do Exército, naquela época, arranjar namoradas era difícil até demais. Era o mesmo que acertas na loteria. Lembro que, durante uma preleção, um oficial disse: “Quem tiver namorada que segure, porque soldado do Exército só tem prestígio com empregadas domésticas. Fiquem sabendo que nenhum pai que se preza dá sua filha para um soldado namorar”. E parece que o cara estava certo mesmo.
Outra coisa que ficamos sabendo foi que soldado também não podia casar. Casamento era coisa para oficiais. Somente um soldado, no meu tempo, conseguiu essa “façanha”, porque já estava noivo e com casamento marcado, antes mesmo de se apresentar no Exército. Os oficiais podiam tudo, enquanto os soldados não podiam nada.
Sabendo dessas verdades, e como tinha apenas duas namoradas, resolvi arriscar alguns encontros com domésticas, na época conhecidas como “piniqueiras”. Elas eram malucas por soldados. No meu caso, somente os pais da Célia, uma das minhas namoradas, não sabiam que eu era soldado. Souberam depois, é claro.
Certa vez, num dia de Finados, a mãe da Célia que fora ao Cemitério do Carmo, visitar o túmulo de uma parenta sua, coincidentemente, bateu à porta da minha casa para tomar um copo com água. Minha mãe, educadamente mandou que as duas entrassem (a Célia estava com a mãe dela). Elas ficaram surpresas ao verem uma foto minha ampliada, na parede da sala. Minha mãe disse que a menina ficou muito nervosa.
A mãe da Célia, que ficara bastante curiosa, começou a fazer perguntas sobre a minha pessoa. Perguntou quem eu era, se era militar, se era bom filho, se tinha namorada, como era o meu temperamento, etc., etc. Graças a Deus, minha mãe, que não sabia de nada, mas desconfiava de tudo, só deu boas referências. A Célia era uma menina de 14 anos (completaria 15 três meses depois), loira e dos olhos verdes, muito mimada por ser a caçula dos três filhos do casal. Foi naquele momento que a mãe da garota descobriu que eu estava no Exército.
Quando eu cheguei em casa, minha mãe contou-me tudo com os mínimos detalhes. Eu fiquei preocupado com a possível reação dos pais da menina. Mas, graças a Deus, somente a Célia comentou o fato afirmando que seus pais aceitaram o namoro normalmente, após a conversa com a minha mãe. Também o meu comportamento educado contribuiu em muito com o resultado positivo de tudo isso.
Não esqueço a campanha política para a Presidência da República, da qual os principais candidatos era o general Henrique Teixeira Lott e Jânio Quadros. Foram momentos de grande tensão. No quartel, os comentários políticos, principalmente os contrários ao general, estavam expressamente proibidos. Eu sabia que, “por baixo do pano”, tinha muitos oficiais que defendiam a candidatura do Jânio Quadros. Era a disputa entre a “espada” e a “vassoura”.
Houve momentos em que interditaram o quartel, atendendo as ordens superiores, oriundas do Quarto Exército, para que ninguém saísse nem entrasse, a não ser as patrulhas especiais, com capacetes de aço (à prova de balas) e cintos de guarnição. Nas ruas, e mais precisamente no centro de Campina Grande, a ordem era desfazer, a qualquer custo, quaisquer aglomerados de pessoas. Minha patrulha ficou nas proximidades da Prefeitura Municipal, lugar de maior fluxo de pessoas naquelas épocas. Foi uma experiência e tanto para mim. Não que eu gostasse daquela situação. Apesar de jovem, eu acreditava que as pessoas deviam ter liberdade de pensamento e, como vivíamos num país democrático, qualquer cidadão poderia exteriorizar seus sentimentos individuais. Mas, apesar de pensar assim, minha condição de militar obrigava-me a cumprir ordens, por mais ridículas de fossem.

CONSEQUÊNCIAS DAS TRANSGRESSÕES

O Exército Brasileiro era assim: quem não obedecesse às ordens superiores pagava pela negligência ou pela rebeldia. As conseqüências das transgressões não eram nada agradáveis. O soldado tinha três destinos: o xadrez disciplinar para as transgressões simples, o xadrez de guerra para as transgressões mais graves e a cela, onde eram colocados os mais indisciplinados, ou seja, aqueles que eram tidos como elementos trabalhosos.
Apesar dos momentos de alegria e satisfação, o Exército Brasileiro oferecia também coisas desagradáveis. Tirar guarda no Flanco Esquerdo e comer a “gororoba” das segundas-feiras, mais conhecida como “vale-tudo”, eram duas situações que não agradavam. Falar em Flanco Esquerdo é lembrar de um fato envolvendo o tenente Passos, um ex-combatente, e um soldado, cujo nome me foge da memória.
Quando estava de serviço (oficial de dia), o tenente Passos não dormia em hipótese alguma. Passava a noite acordado e fazendo rondas. Ele dava a vida para flagrar um soldado fora dos padrões militares ou negligenciando no serviço. Certa noite, o soldado sentou-se à beira de um córrego que havia próximo ao cercado, no Flanco Esquerdo. Cansado, o soldado adormeceu, acordando com o grito do tenente:
- Tá dormindo, soldado! – falou o oficial.
De imediato, o soldado levantou a cabeça e, com uma presença de espírito fora do comum, colocou o dedo na boca e...
- Psiu! Deita aí que os caras entraram por aqui!
De imediato, o tenente deitou e passou a obedecer às ordens do soldado que continuou:
- Vá pelo lado de lá, que eu vou por aqui. Se pegar os caras, segura eles, tenente, e me chama, certo!
O oficial obedeceu e, em dado momento, pegou em algo mole e bastante fedorento. Levou a mão ao nariz e gritou:
- Soldado, isso é merda e é merda de gente!
O soldado, sempre autoritário, replicou:
- Psiu! É que eles devem ter cagado aí, tenente. Vá em frente. Depois o senhor toma um banho e fica tudo legal.
Agora, você, leitor, pense no que deu para o soldado quando foi descoberto. Uma coisa é certa: muita gente riu a bessa e achou o máximo. O tenente Passos não era bem visto pelos soldados, principalmente pelos recrutas.
Outro fato que aconteceu e que não poderia deixar de ser contado é o que envolveu três soldados, um oficial e um mamão.
O major Maurício tinha uma horta dentro do quartel, onde ele plantara também um mamoeiro. Todos os dias, religiosamente, ele fazia uma visita à “menina dos seus olhos”. Havia naquele mamoeiro um mamão que passou a despertar a atenção de todos. Num certo Domingo, um dos soldados que tiravam guarda naquele setor (eu era um desses soldados), achou por bem tirar e comer o saboroso fruto.
Na manhã da Segunda-feira os três fomos convocados a comparecer ao gabinete do major e ficamos sabendo o motivo: nós seríamos levados ao xadrez disciplinar, até que fizéssemos cocô num lugar pré-determinado, acompanhados por um oficial da confiança do major, para saber se havia sementes do fruto. Rapidamente, eu fui para o teste e fui liberado. Um outro soldado fez o mesmo e também foi inocentado. O terceiro não resistiu à pressão psicológica e confessou o “crime”. Nunca pensei que um mamão causasse tanta confusão.
Brincadeira de mau gosto às vezes causa prejuízos irreparáveis. E foi o que aconteceu com Da Silva, um soldado que só foi ruim para ele mesmo. Certo dia, um colega esqueceu o armário aberto. Isso foi o bastante para o Da Silva pregar uma peça no colega. Abriu o armário, tirou um relógio do companheiro e escondeu no seu armário. Ao dar pela falta do objeto o soldado alarmou.
Eu costumava ir ao alojamento, todas as tardes, fazer o meu lanche diário. Ao chegar ali, soube que o local estava interditado para uma vistoria nos armários, pelo Sargenteante que tinha as cópias de todas as chaves. No final, encontraram o relógio no armário do Da Silva que, até aquele momento, não sabia de nada.
O soldado foi chamado ao Comando da Companhia e, por mais que tentasse justificar a sua intenção de brincar com o colega, não conseguia obter a compreensão dos oficiais ali presentes. Terminou sendo expulso do Exército, deixando muitos colegas tristes. Nós sabíamos que ele não era capaz de cometer tamanho delito, mas nossa opinião de nada valeria num momento como aquele.
Fato constrangedor foi a expulsão do Da Silva. Ficamos todos na quadra e, no momento em que foi lido o Boletim Interno e mais precisamente a sua Quarta Parte (Justiça e Disciplina), os tambores rufaram e todos deram meia-volta, ficando de costas para ele, como prova de repúdio ao seu comportamento. Em seguida, ele desfilou pelas principais ruas de Campina Grande conduzindo uma placa no peito e outra nas costas com a inscrição: Excluído do serviço militar por incapacidade moral: LADRÃO. No Exército é assim mesmo, você explica, mas não justifica. Eles têm sempre razão.
Outra expulsão por causas fúteis foi a do soldado Valdemar (Deminha). Ele era um bom companheiro, um soldado sem qualquer maldade. Por várias vezes ele foi preso. Lembro que numa dessas vezes, foi por causa de uma discussão entre um cara e uma senhora, num lotação. Ele foi defender a mulher, brigou com o cara e foi preso.
Em outra ocasião, o Valdemar estava no baixo meretrício da feira, em Campina Grande, quando houve uma confusão envolvendo uma prostituta. Ele partiu em defesa dela, criando um tumultuo no recinto. Foi preso e conduzido ao quartel. Somadas as advertências e as prisões, Valdemar chegou ao comportamento mau e acabou expulso.
No Exército Brasileiro era assim: o soldado recebia uma advertência, depois era detido (no quartel ou no alojamento, dependendo da falta cometida), em seguida vinham as prisões que variavam entre três dias e um mês. Isso levava o soldado para um comportamento insuficiente, comportamento mau e, em seguida, a exclusão.
Todas as exclusões, ou expulsões, como queiram, eram feitas na quadra, com a presença da banda marcial e de um pelotão especial. Quando era decretada a expulsão, todos davam meia-volta, ficando de costas para a “vítima”, até que esta se retirasse do local. Era um sinal de repúdio ao comportamento do colega. Duro, não!
Agora vem a história do Segundo Sargento Paulo. Ele era daqueles caras que tentavam impor moral. Sua gandola (a camisa do sétimo uniforme) era suja, seus coturnos amarrotados e a fivela do seu cinto não apresentava brilho algum. Mas ao falar conosco, dizia com autoridade: “O soldado tem que dar bom exemplo. Sua farda deve estar sempre limpa e bem passada, seus coturnos engraxados e a fivela do cinto sempre brilhosa. Entenderam! Não gosto de ver soldado desleixado, certo!”. Só que ele fazia totalmente o contrário do que dizia.
Sempre que podia, eu cantava algumas músicas do Paul Anka e do Neil Sedaka, na época, sempre gravadas pelo Carlos Gonzaga. Entre essas músicas, destacam-se “Um milhão de vezes”, “Meu mau fingimento” e “Diana”.
Uma certa noite inventamos uma seresta e a coisa virou mania. Surgiu, então, o Conjunto “Los Jajabas” e eu passei a ser o cantor oficial. O conjunto era composto de um violão, uma clarineta e um saxofone. Até o tenente Marques, quando estava de serviço, participava das serestas que, diga-se de passagem, era bem organizada e não incomodava ninguém. Pra quem não sabe, “jajaba” era como os soldados antigos chamavam os novatos, ou recrutas.
Um fato inesquecível foi o que teve como protagonista o soldado Pimentel. Contava-se, naquela época, que um “jeep” com alguns militares havia sofrido um trágico acidente, causando a morte de um capitão, chegando a decepar-lhe a cabeça. Este veículo encontrava-se no chamado “cemitério dos carros velhos”, junto a outros também imprestáveis. Eles estavam sobre tambores vazios ou cavaletes.
Diziam os soldados mais antigos que aquele “jeep” gostava de atemorizar os soldados que tiravam guardas no Flanco Esquerdo e que se deslocavam até aquele local que ficava no final do trajeto. Não sei se por problemas psicológicos ou por ser medroso, o soldado Pimentel foi uma das vítimas do tão temido veículo.
Ele estava de serviço no Flanco Esquerdo, no período de meia-noite às 02:00 horas, quando, de repente, e segundo ele mesmo afirmou depois de uns três dias, o “jeep” acendeu as luzes, ligou o motor, acelerou e partiu em sua direção. O resto, segundo ele, só veio a saber através dos relatos de seus colegas.
O que prova a veracidade do fato é que o soldado saiu em disparada, deixando a arma, um “mosquetão”, no lugar, indo cair sem sentidos em frente à porta do alojamento do Corpo da Guarda. Todos correram e até os soldados que dormiam naquele alojamento acordaram com o movimento Pimentel foi conduzido ao hospital do quartel, onde ficou internado durante uns três dias, para recuperar-se do trauma.
Se era verdade que o “capitão sem cabeça” continuava dirigindo o “jeep”, isso eu não sei, pois nunca vi nada estranho quando tirava guardas naquele local. Talvez pelo fato de estar consciente de que um defunto jamais teria condições de agir como uma pessoa normal. Para mim, morreu, acabou. O mundo é dos vivos e não dos que morrem.
Assumir uma posição fora de suas limitações pode trazer-lhe sérios prejuízos. E foi assim que aconteceu numa tarde de Domingo na Central Telefônica do quartel, onde, em dias como aquele, costumava-mos ficar “batendo papo” com o telefonista de dia. Em dado momento o colega precisou ir ao banheiro e pediu que atendêssemos ao telefone, caso este viesse a tocar. É claro que todos eram responsáveis para atender pelo colega.
Era uma raridade alguém ligar para o quartel aos domingos ou feriados, a não ser quando acontecia um caso envolvendo algum soldado do Exército. Só que o que era quase impossível aconteceu. O telefone tocou e um cabo que estava conosco antecipou-se a todos e atendeu. Do outro lado da linha, um oficial da Polícia Militar informava que sua patrulha havia abordado um dos nossos soldados e pedia para que a nossa patrulha fosse buscá-lo. Naquela época, a Polícia não podia prender soldados do Exército. Podia abordá-los, protegê-los e, em seguida, entregá-los à Patrulha do Exército.
O cabo residia no quartel e, naquele dia, estava de folga. Dizendo-se oficial de Dia, humilhou o quanto pôde o oficial da Polícia, inclusive ameaçando-o se tratasse mal o soldado. No dia seguinte, o oficial foi ao quartel e comunicou o fato ao major Marcelo que, de imediato, chamou o telefonista que disse nada saber a respeito do telefonema. Realmente, tudo aconteceu quando ele estava no banheiro e ninguém chegara a comentar com ele o que havia acontecido.
Diante da sinceridade do soldado telefonista, o major convocou todos os que foram à Central naquele dia e descobriu que o autor da atitude irreverente foi o cabo, cujo nome eu não lembro. O major convocou o cabo que, sem vacilar, confirmou tudo. O pior é que ele fora aprovado no curso para Sargento, fora aprovado e estava esperando sua promoção. Caso fosse punido, a promoção poderia ser até cancelada.
Depois da repreensão, o cabo foi até à Fiscalização Administrativa e conversou comigo a respeito de sua preocupação, pedindo por tudo neste mundo, que eu o ajudasse. Eu prometi que faria o possível e que quando a Parte pedindo a sua punição chegasse às minhas mãos, eu a engavetaria. Se alguém reclamasse, eu daria uma desculpa qualquer e, sem outra saída, encaminharia ao sub-Comando. Caso contrário, eu daria fim ao documento comprometedor.
Dias depois, a Parte chegou às minhas mãos, com o pedido de uma punição de trinta dias, no xadrez disciplinar. Seria o fim para o cabo e pior ainda se o major optasse por algum agravante, o que acarretaria no aumento da punição. Fiz conforme havia prometido ao colega. Comuniquei-lhe o fato e ficamos torcendo para que tudo desse certo. E, para sorte dele, deu certo.
Finalmente, chegou o tão sonha dia das promoções. A cerimônia contara com as presenças de oficiais, dos familiares e amigos dos promovidos. Era uma festa e tanto. E lá estava o cabo para receber as fitas de Sargento. Eu estava na Banda Marcial e notei o seu olhar de agradecimento. No dia seguinte, abri uma das gavetas de minha mesa de trabalho, tirei de lá a Parte contra o colega, agora Sargento, rasguei-a em pedaços, fui ao banheiro, joguei-os no vaso sanitário e dei a descarga. Lá se foi a condenação do “inocente”.
A partir daquele dia, o agora Sargento passou a ver-me como um amigo de verdade, um homem de palavras. Interessante que quando ele estava de serviço (Sargento da Guarda), e eu também estava de serviço, ele me procurava e perguntava onde eu desejaria ficar. Eu sempre escolhia Relacionador de Viaturas. Era um serviço leve: apenas anotava numa folha especial os veículos que entravam e saiam do quartel, seus motoristas e seus destinos. Eu sempre escolhia o segundo quarto de hora (20:00 às 22:00 e 02:00 às 04:00). É como eu costumo dizer: “uma mão lava a outra e as duas se enxugam”.
Eu também já me vi numa situação constrangedora. Certa vez resolveram fazer uma reforma no Alojamento (dormitório) dos Soldados. Eu estava de serviço (Plantão), mas só trabalhava à noite. Durante o dia, nós ficávamos nos nossos locais de serviços normais no quartel.
Eu estava trabalhando e, justamente nesse dia, minha mesa estava repleta de serviços, com muitos ofícios e rádios recebidos e expedidos para serem protocolados. De repente, apareceu o Cabo de Dia pedindo-me para ficar no alojamento esperando a pessoa encarregada dos serviços. Naquela oportunidade, mostrei ao Cabo a quantidade de papéis diante de mim. Ele entendeu e foi procurar outro soldado.
Alguns momentos depois, o Cabo voltou e disse que não tinha jeito mesmo, eu era o único que poderia “quebrar aquele galho”. Ele chegou a pedir permissão ao tenente Negri que autorizou a minha ida. O Cabo disse que seria até uma oportunidade para eu descansar um pouco a cabeça; que eu poderia escolher uma cama e deitar até que o pedreiro chegasse ao alojamento.
O alojamento estava deserto e tudo era muito calmo e silencioso. Abri a porta, escolhi o primeiro beliche, próxima à entrada, afrouxei o cinto de guarnição, retirei o capacete, coloquei-o na cama e deitei-me fazendo dele meu travesseiro. Pensei apenas em descansar o corpo mas acabei adormecendo. Não vi quando o Major Maurício chegou em companhia do capitão Braga, comandante da CCS e do pedreiro, para verem onde seriam feitos os serviços. O capitão Braga (para aparecer na frente do major), repreendeu-me e disse que depois falaria comigo.
Os dias passaram sem que eu fosse chamado à Companhia de Comando e Serviços para falar com o capitão Braga. Eu pensava que o caso tinha “caducado” e que nada me aconteceria, principalmente sabendo que as Partes sempre passavam por minhas mãos. Engano meu.
No Sábado, quando todos, inclusive eu, estávamos em forma para a leitura do Boletim Interno, fui surpreendido com a citação do meu nome na Quarta Parte, Justiça e Disciplina. Ali estava a minha punição: três dias no xadrez disciplinar. O capitão Braga solicitou a punição diretamente da Companhia, sem a necessidade de passar pelas mãos do Sub-Comandante. Ele fez de propósito deixando a punição para o final de semana. Coisa de “bicha” mesmo.
Uma coisa admirável naquela época (1960) era a disciplina militar. O jovem podia até ter jeito de criança ou adolescente, mas com certeza saía homem. Aliás, Exército era coisa pra homem mesmo. Quem não agüentava se “ferrava”.
Tenho certeza que meus colegas daquela época não conseguiram esquecer os toques de recolher, da revista das 20:00 horas, do rancho, do silêncio, e da alvorada. Também duvido que alguém tenha esquecido os exercícios com armas. Era legal desmontar e montar um fuzil (mosquetão) ou uma metralhadora, numa disputa pelo menor tempo. Nisso eu era muito bom.
Como integrante daquela maravilhosa corporação militar, eu tive intimidade com a metralhadora INA, fabricada pela Indústria Nacional de Armas; com a metralhadora antiaérea ponto 50, que girava num ângulo de 180 graus; com a mauzer Wessen 45; com o fuzil e com as granadas. Nos exercícios de lançamento de granadas, consegui, depois de muitos treinamentos, atingir os 80 metros. O campeão em lançamento era um soldado antigo bastante musculoso, que lançava a 100 metros. Outros chegavam aos 90, mas não conseguiam superar o “gigante”.
Nós sempre realizávamos marchas como preparativos para o acampamento, no qual éramos submetidos aos exercícios mais duros e cansativos. Era como se estivéssemos numa guerrilha. A primeira marcha foi de apenas doze quilômetros, ida e volta. Eram duas filas indianas, uma pela direita e outra pela esquerda das avenidas e das estradas, sempre acompanhados por uma ambulância do Exército, com médicos e enfermeiros..
A marcha mais longa foi a que fizemos para a Fazenda Amazonas, distante 24 quilômetros do quartel, onde acampamos por três dias. Ali chegando, preparamos o terreno e armamos nossas barracas. Vale salientar que em cada barraca ficavam dois soldados. É que cada soldado levava às costas meia barraca. Meu companheiro era o Roberto, um cara bem legal e amigo de minha confiança.
Na barraca dos oficiais, uma barraca gigante, estavam as instalações de rádio para as comunicações com o quartel. Era um local bem guardado. Dalí também saíam as ordens para os soldados e eram feitas todas as estratégias de ataques e defesas durante os exercícios que realizávamos. Era um mini quartel general. Eram treinamentos duros e que exigiam bastante agilidade e competência, visto que eram formados vários pelotões, cada um comandando pelos soldados mais antigos daquela turma (215, 216, 217, 218, 219 e 220)
No primeiro dia tivemos treinamentos diversos: rastejamento, pelos lugares mais difíceis, obstáculos com cordas, tiros ao alvo, construção de trincheiras, camuflagens diversas e simulação de ataque. Foram tão intensos os treinamentos que nem tivemos tempo para o almoço. A comida esfriou e ninguém teve a coragem de consumi-la. Era esperar para o jantar, que só aconteceu lá pras 23:00 horas, depois dos exercícios noturnos. Todos estavam cansados. Como dissera antes, era coisa pra homem mesmo.
No segundo dia, nossa tarefa era atacar uma casa que havia a uns três quilômetros do nosso acampamento, sem que as pessoas ali residentes soubessem de nada. Recebemos todas as instruções dos oficiais e, cada comandante recebeu o material necessário para a execução da missão. Os obstáculos a enfrentarmos eram os mais diversos e o pelotão que realizasse a tarefa em menos tempo teria a manhã seguinte de folga.
Eu era o comandante do meu pelotão, por ser um dos mais antigos hierarquicamente (meu número era o 216) e, em poder de uma bússola, instrumento indispensável para uma missão como aquela, segui em frente com os meus comandados. Graças a Deus, todos eram bons soldados: disciplinados e destemidos. Isso nos ajudou bastante para chegarmos em primeiro lugar, empatados com o pelotão do soldado Aleixo (215), outro bom companheiro.
Naquele acampamento, aconteceu um fato inesquecível: estávamos nós restaurando nossas forças, na noite do segundo dia, no pátio preparado por nós para aquele momento, quando, de repente, apareceu uma cobra. Ainda ensaiamos uma reação, mas um dos tenentes que estavam conosco, mandou que ficássemos parados e segurássemos o fôlego. A intrusa passou por cima de alguns soldados que estavam deitados.
Naquele momento, o mesmo oficial ordenou que eu atirasse na incômoda visitante. Peguei o fuzil e abri fogo. Foi pedaço de cabeça pra todo canto. O tenente apanhou a cobra e guardou-a Soube que ele tirou-lhe a pele e mandou fazer um cinto. Depois que tudo voltou ao normal, continuamos, mesmo desconfiados, com o nosso momento de descanso, inclusive com uma seresta bem gostosa.

MISSÕES MILITARES

A vida militar não se limita aos trabalhos burocráticos ou aos exercícios diários e cansativos. Naquela época, nós tínhamos grandes responsabilidades, principalmente quando se tratava de manutenção da ordem. Missões, às vezes consideradas impossíveis, são colocadas à disposição das Forças Armadas que, com coragem e responsabilidade, as realizam sem o mínimo receio de não alcançarem o sucesso.
Certa vez, fomos convocados para interceptarmos a fabricação de fogos clandestinos em um determinado bairro de Campina Grande, se não me engano, no bairro de José Pinheiro. Alí havia um antigo cinema, cujo prédio estava servindo para a fabricação de fogos de artifício. Como estava próximo o São João, a fabricação estava indo de “vento em pôpa”.
Um comunicado anônimo chegou ao Comando do Batalhão de Serviços de Engenharia que, de imediato, enviou um contingente para anular as investidas dos fabricantes clandestinos. A operação foi cuidadosa e foi realizada à noite, para não chamar a atenção dos moradores daquela área. Tomamos todas as possíveis saídas, evitando assim que as pessoas que estivessem no interior do prédio conseguissem fugir. Um oficial deu ordem para que abrissem as portas. Ao notarem a presença do Exército, alguns funcionários que dormiam no local tentaram fugir pelo lado oposto, mas foram presos, pois o prédio estava cercado e eles não sabiam.
Após efetuarmos a prisão daqueles funcionários, o fato foi comunicado ao quartel que enviou dois caminhões para a condução dos fogos apreendidos. No quartel havia sido armada uma barraca gigante, onde seriam armazenados os produtos. A operação foi tão rápida que nem deu tempo para a vizinhança tomar conhecimento. Somente no dia seguinte é que todos vieram saber da nossa operação.
O local transformou-se em mais um posto, o que fez com que o Comando determinasse outro contingente para fazer a segurança dos fogos. Até os soldados passaram a Ter suas bolsas revistadas na saída do quartel, evitando, desta forma, que alguém pudesse subtrair aqueles produtos. Não chegou ao meu conhecimento quem alguém tenha sido flagrado com fogos em suas mochilas.
Quanto ao, ou aos proprietários da fábrica clandestina, segundo fui informado por colegas que trabalhavam na CCS, eles foram localizados, identificados e entregues à Polícia Militar que tinha a função de tomar as providências para sua autuação. Nossa obrigação era agir na apreensão dos artefatos, nunca na prisão de civis, a não ser em casos especiais envolvendo a segurança nacional.
Outro fato que exigiu a participação efetiva do Exército Brasileiro foi a campanha nacional de desarmamento. Como se tratava de um perigo para a Nação, a condução de armas por civis passou a ser um fato de responsabilidade das Forças Armadas. Vários foram os pelotões formados para a execução da missão.
Cada pelotão contava com cinco militares, sendo um cabo e quatro soldados. Dois soldados conduziam um saco de lona, enquanto outros dois realizavam o trabalho de abordagem, sempre observados pelo graduado (o cabo). Era uma função difícil, visto que muitos tentavam resistir quando eram convocados a entregarem as armas.
O mais interessante em toda essa operação era que, durante a abordagem, nós não queríamos saber a posição social do cidadão. Eram abordados médicos, advogados, comerciantes e comerciários, industriais e industriários, juizes, promotores. Ao Exército não interessava saber o “status” das pessoas abordadas.
Sempre que abordávamos alguém, tínhamos o cuidado de dizer-lhe: “Sua arma estará à sua disposição no quartel. Se tiver porte de arma, esta será devolvida. Obrigado”. Os mais conscientes aceitavam a operação; os mais ignorantes resolviam apelar, inclusive citando sua posição social e, na maioria das vezes, as tradições familiares. Mas nada conseguia mudar a situação, afinal, no Exército as ordens devem ser cumpridas, mesmo que venham de encontro aos interesses dos intocáveis.
Mas, se éramos convocados para represálias, também estávamos à disposição para ações sociais. E isso foi o que aconteceu quando o Açude de Orós, no Estado do Ceará, esteve preste a estourar, devido a umas rachaduras descobertas em suas paredes. O caso era grave e estava atemorizando os moradores de cidades localizadas nas imediações daquele reservatório.
Para ajudar na retirada das pessoas ali residentes e para transportas alimentos, roupas e cobertores para os desabrigados, o BsvE recebeu um pedido do Governo do Ceará. Como voluntários, fomos levados em várias viaturas do Exército até aquela localidade, onde vários helicópteros do Exército já nos esperavam para o cumprimento da honrosa missão. Nossa chegada foi motivo de muita alegria para aquelas pessoas amedrontadas pela situação, que nos aplaudiram como se fôssemos verdadeiros heróis.
A recepção daquela gente nos encorajou ainda mais. Nossa missão foi coberta de êxito, graças a perícia dos comandantes das diversas representações do Exército, Marinha e Aeronáutica, presentes àquele local. A aglutinação de forças resultou no sucesso da operação. Voltamos felizes pelo dever cumprido e isso fez com que eu recebesse um elogio coletivo.
Apesar de algumas atividades que nos tiravam do sério, o Exército também sabia reconhecer os trabalhos dos bons soldados, concedendo-lhes elogios. Eu mesmo recebi dois elogios individuais e três coletivos. Os elogios individuais eu os recebi, um, pelo meu desempenho na Fiscalização Administrativa, realizando um trabalho dinâmico e eficaz; o outro, pelo meu desempenho nos exercícios, principalmente no manejo das armas. Os elogios coletivos foram recebidos pela minha participação na Banda Marcial; pela minha participação na “Operação Orós”; e pelo bom desempenho durante o acampamento militar, na Fazenda Amazonas.
O Dia do Soldado era solenemente comemorado no Batalhão de Serviços de Engenharia. O dia começava com o toque de alvorada. Em seguida, todos eram convocados para o café da manhã, especialmente preparado para os homenageados. Era um dos raros momentos em que nós recebíamos tantas ovações.
Depois do café da manhã, todos estavam preparados para receberem seus familiares que eram convidados a prestigiarem o nosso dia. A programação começava com jogos de futebol, volley, basquete, futebol de salão e handebol. Era a oportunidade de mostrarmos nosso lado de atletas. As belas jogadas eram aplaudidas, principalmente pelos ilustres visitantes.
Um momento brilhante foi a apresentação do Cabo Jackson, que fazia mágicas incríveis. Ele hipnotizava como ninguém e fazia as pessoas chegarem ao delírio. Lembro uma das mágicas feitas por ele. Na platéia estavam oficiais e soldados com seus familiares. No palco, o Cabo Jackson chamou um voluntário. Um soldado subiu e o mágico fez com que ele ficasse com a cabeça numa cadeira e os pés em outra. Em seguida passeou sobre ele, como se estivesse numa ponte.
Dando seqüência ao seu trabalho, o Cabo Jackson fez com que o soldado hipnotizado fosse até onde estavam sentados o Major Marcelo e sua esposa, sentasse no colo do oficial e lhe tomasse a bênção, chamando-o de papai. O delírio foi geral, principalmente dos soldados que passaram a chamar o colega de “filhinho do major”. Quando o soldado voltou ao normal estava no colo do major. Ele deu um pulo e ficou todo sem graça.
No dia 7 de setembro, dia da Independência do Brasil, participamos do desfile da Independência. Por coincidência, a Banda Marcial e o pelotão das bandeiras ficaram no Monte Santo, bem em frente à minha casa. Alí, o prefeito Severino Bezerra Cabral passou a tropa em revista e, dirigindo-se ao comandante disse “Esse ano tá muito mais mió do que no ano passado”. Para os moradores daquela localidade foi uma grande festa. Nós fomos os últimos a desfilar. Isso porque todos esperavam até o final do desfile para ver o desfile do Exército Brasileiro. É que a cadência dos militares era bonita e de uma perfeição ímpar.
Lembro de uma vez em que o Comando do BsvE recebeu da Marinha, um pedido de ajuda para capturar e prender um Fuzileiro Naval que havia desertado e que, segundo o comunicado, encontrava-se em Campina Grande. A patrulha iniciou a busca e acabou encontrando o desertor, levando-o para o quartel, colocando-o no xadrez de guerra. Dias depois, chegou uma patrulha para levar o desertor de volta ao Recife, onde seria punido pela indisciplina praticada.
Ser gêmeos, às vezes traz sérios problemas. E foi o que aconteceu com o jovem Rildo, irmão gêmeo do soldado Hildo. Eles eram bastante parecidos e esse detalhe não foi lá muito bom para o Rildo. Ele se encontrava no centro da cidade, quando foi abordado pela patrulha do Exército por estar à paisana. Por mais que tentasse explicar que não era o Hildo, mas seu irmão gêmeo, de nada adiantou. Só ao chegar ao quartel e com a presença do Hildo, o caso foi esclarecido e os soldados tiveram que se desculpar diante do rapaz. Que mancada, héim!
O soldado Valdemar (Deminha), era daqueles caras que não ligavam muito para o perigo e, muito menos para qualquer punição. Todos os dias, às 20.00 horas, era feito uma revista, quando todos os soldados que estavam no quartel, principalmente os presos e detidos, deviam responder à chamada.
Os que estavam internados também eram submetidos à revista, no hospital ou na enfermaria. Sempre que havia um forró, na Palmeira ou outros lugares próximos, Valdemar pulava a cerca do Flanco Esquerdo e fugia da revista. Em sua cama, ele fazia uma arrumação que ficava parecendo uma pessoa deitada.
Em uma dessas noites eu estava de plantão e, por mais que pedisse, ele insistiu e fugiu dizendo que eu comunicasse ao tenente que ele estava com muita febre e, por isso, estava dormindo, não podendo comparecer à revista. O tenente foi até o alojamento e, por sorte do Valdemar, acreditou nas minhas palavras.
Em outro dia (isso geralmente acontecia aos sábados), Valdemar repetiu a façanha. O soldado de plantão e o oficial do Dia eram outros. O tenente nem se deu ao trabalho de ir ao alojamento, pois não era desses oficiais “caxias”. Mas a sorte foi contra o Valdemar. Houve uma tremenda confusão no forró e, lá estava o soldado que, embora não estivesse envolvido na briga, foi levado pela patrulha por estar na rua fora de hora, fardado e embriagado. Daí pra frente, nunca mais ele fugiu do alojamento.
O Valdemar era cheio de artimanhas. Antes de servir ao Exército, ele era funcionário de uma oficina de meu pai. Depois, retornou ao emprego, por ser um bom empregado. Certa vez, ele estava de casamento marcado. Tudo estava pronto. A igreja estava cheia de amigos dos noivos. A noiva estava ansiosa e, como a hora passava sem que o noivo aparecesse, ela começou a ficar nervosa. Mas o pior estava por acontecer. Alguém chegou e deu a triste notícia de que o noivo havia desaparecido.
Valdemar, o Deminha aprontou esta, deixando todo mundo sem entender o que havia acontecido. O certo é que, tempos depois, ele aparecia dizendo que não havia nascido para casar. Partindo dele, nada poderia ser considerado impossível. Mas, apesar do comportamento meio maluco, Deminha era um jovem maravilhoso, incapaz de ofender alguém. Exclua-se a pobre noiva.
Vida de militar não é moleza. Tudo deve ser feito obedecendo a rígida disciplina aplicada pelo Comando Geral, aliás, uma rigidez que visa mais os soldados e graduados. A obediência era capaz de contribuir com o caráter do militar. Não se tratava de lavagem cerebral, como muitos costumam dizer. Quem não se adaptava ao regime imposto recebia as punições devidas. Afinal, Exército é Exército, ou seja, um exemplo para uma Nação que prima pela sua segurança e, conseqüentemente, pela segurança do seu povo.
Certa vez, eu fui escolhido para acompanhar uma carga até o XV RI (Décimo-Quinto Regimento de Infantaria), em João Pessoa. Recebi ordem para entregar o carregamento e procurar junto às Companhias, alguma carga para Campina Grande.
O retorno foi rápido, uma vez que não havia qualquer encomenda para Campina Grande. Na saída de cidade de Santa Rita, encontramos dois oficiais que precisavam viajar até Cajazeiras. Eu cedi o meu lugar junto ao motorista, passando para cima do caminhão (um QT), ficando com mais dois soldados que nos acompanharam na missão.
A viajem estava tranqüila e nós conversávamos alegremente sobre fatos envolvendo soldados. Comentávamos o comportamento de alguns oficiais e casos interessantes ocorridos dentro e fora dos quartéis. Cada caso era motivo de risos.
De repente, começamos a sentir algo estranho com o veículo que começava a fazer manobras desconcertantes na estrada (naquela época não havia asfalto entre Campina e João Pessoa). Sentindo que o veículo poderia virar, saltamos para não sermos esmagados por aquele monte de ferro verde.
Um dos soldados quebrou uma das pernas. O outro ficou muito machucado junto a uma cerca de avelós, uma planta africana, muito usada no Nordeste para cercar propriedades. Eu me arrastei pela estrada machucando as mãos, o rosto e as pernas. Foi um “Deus nos acuda”.
No interior do veículo, os oficiais gritavam para que alguém os tirasse dali. Um deles foi atingido pela alavanca, ficando com duas costelas afetadas. O outro gemia com o peso do motorista sobre o seu corpo. Para quem não se dava muito bem com os oficiais, aquele seria um momento propício para gracejos, apesar das circunstâncias em que as coisas aconteciam.
Como conseqüência do acidente, fiquei internado durante três dias. Pior sorte teve o colega que teve uma das pernas fraturada. Ele teve que passar mais tempo em uma das camas da enfermaria. O outro, com ferimentos leves, recebeu alguns curativos e foi liberado em seguida.
Para mim, o prejuízo foi maior, uma vez que estava no Curso de Formação de Cabos (CFC) e não pude fazer as duas provas que me restavam. Eu já havia passado pelas provas anteriores, inclusive a prova de Ordem Unida, ou seja, a prova de Voz de Comando. Ainda cheguei a pedir permissão para fazer as provas na enfermaria, o que não me foi permitido, infelizmente.
Servir ao Exército não era uma missão difícil para quem teve uma educação rígida, com os pais exigindo o máximo de educação e respeito. Para quem foi criado com muita liberdade para fazer o que bem queria, a vida militar era um dos maiores castigos. Sempre ouvia alguém dizer: “O Exército vai tirar as tuas manhas”. Isso me levava a crer que servir ao Exército era mesmo negócio para homens.
No meu caso, nada seria diferente, uma vez que eu tivera uma educação bastante rigorosa. Com quatro anos de idade, recebi a primeira surra. Meu pai costumava ir à “bodega” (em alguns lugares, mercearia), pagar as compras feitas durante a semana. Ele levava sempre uma cadernetinha, onde estavam relacionadas as compras e seus respectivos valores. Como ele fazia o somatório em casa, já levava o dinheiro certo para o pagamento.
Em uma daquelas sextas-feiras, eu pedi para ir com ele. Chegando à “bodega”, insisti para que meu pai comprasse para mim uns caramelos, chamados na época de “café-e-leite”. Meu pai disse que me daria quando chegasse em casa e que lá havia muitos para mim. Eu insistia e alguns amigos de meu pai, vendo o meu comportamento, partiram em minha defesa, pedindo que meu pai atendesse ao meu pedido.
Em casa, revoltado com o meu comportamento e com a vergonha sofrida diante das pessoas presentes àquela “bodega”, meu pai partiu para me bater. Mesmo com quatro anos, saí em disparada pela rua, sendo seguido pelo meu pai que, a cada momento se irritava ainda mais. Ao alcançar-me, ele saiu me arrastando até em casa, onde paguei pela besteira que fiz.
Minha mãe e alguns vizinhos ainda tentaram defender-me. Eles bateram à porta gritando para que meu pai parasse e tivesse piedade de mim. Ele parou um pouco, foi até à porta, abriu-a e olhando com raiva para aquelas pessoas, gritou: “Saiam daqui. O filho é meu e eu bato até quando quiser. Quem tentar me impedir, apanha também!”. Diante do comportamento de meu pai, as pessoas se afastaram em silêncio.

(Aguardem a continuação...)

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